A proteção da criança no mercado de consumo
A posição das crianças enquanto consumidoras é uma realidade, na função de destinatárias finais dos produtos ou serviços ou como influência nas compras da família. Sua participação é cada vez maior no processo de escolha e aquisição [1].
Ao classificar os consumidores como vulneráveis, o Código de Defesa Civil (CDC) instituiu um patamar mínimo de proteção, patamar este que vem sido ampliado pela doutrina pelo desenvolvimento do conceito de hipervulnerabilidade (ou vulnerabilidade agravada), termo utilizado pela primeira vez pelo ministro Antonio Herman Benjamin no julgamento do Recurso Especial n° 586.316 para se referir aos consumidores que apresentavam problemas de saúde e posteriormente ampliado para incluir idosos [2], [3], crianças [4], refugiados [5], gestantes [6], analfabetos [7], superendividados e qualquer outro consumidor que se encontra em um patamar de maior vulnerabilidade [8], determinando uma proteção qualificada do Estado e uma atuação mais cuidadosa dos fornecedores [9].
Quando se trata das crianças, o agravamento de sua vulnerabilidade é evidente. Em razão de sua condição de pessoas em desenvolvimento e por limites próprios decorrentes de seu desenvolvimento físico e mental, não possuem condições plenas de compreender o conceito de oferta, as consequências de uma publicidade, os exageros decorrentes de técnicas de convencimento ou o interesse econômico envolvido por trás de um anúncio divertido que interrompe seu jogo online ou o vídeo de seu influenciador preferido (sem mencionar quando o anúncio faz parte do próprio jogo ou vídeo, ainda que de forma por vezes dissimulada)[10], [11].
A afirmação, pela doutrina e pela jurisprudência, de sua condição de hipervulnerabilidade, tem o condão de permitir o desenvolvimento de uma proteção aprofundada, prioritária e integral.
Em 2014, o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda), em atitude inédita até então, publicou a Resolução n°163 que [12], de forma inovadora, definiu o conceito de comunicação mercadológica e definiu a abusividade de seu direcionamento às crianças e adolescentes.
O grande mérito da resolução encontra-se em, para além de abordar o conceito de publicidade, já inserido no CDC, apresentar a comunicação mercadológica, que inclui a publicidade e outras formas de comunicação com esses consumidores, como embalagens, disposição de produtos em estabelecimentos comerciais e outros, utilizando a técnica já apresentada no CDC de uso de conceitos Abertos a fim de permitir uma interpretação mais abrangente e protetiva [13].
Assim, restou definida a abusividade do direcionamento de toda e qualquer comunicação mercadológica a crianças e adolescentes, em um passo inovador e corajoso na proteção dos hipervulneráveis (passo posteriormente seguido pela Lei n° 13.257/2016 em seu artigo 5º).
Entretanto, a publicação da resolução, ao levantar o debate a respeito da abusividade da comunicação mercadológica para o público infantil, despertou também movimentos contrários. A título de exemplo, a Abert, poucos dias após a publicação do documento, manifestou-se no sentido de não reconhecer sua legalidade e deixar evidente sua discordância com o texto [14]. No âmbito do Poder Legislativo, houve a apresentação de Projeto de Decreto Legislativo visando à sustação dos efeitos da resolução, sob o argumento de que se trata de usurpação de competência por parte do conselho [15].
Segundo Miragem, os argumentos não se sustentam, pois o parecer atende à exigência de proporcionalidade da regulamentação, cumprindo os critérios de conformidade ou adequação de meios, a exigibilidade ou necessidade da medida e proporcionalidade em sentido estrito. Ele conclui que não há extrapolação de competência e que a resolução conforma o sentido constitucional da liberdade de iniciativa publicitária, não ocorrendo qualquer vício de inconstitucionalidade [16].
Apesar de seu pioneirismo e inovação, a Resolução 163 encontra pouca efetividade, sete anos após sua publicação. As recentes decisões do Supremo Tribunal Federal e Superior Tribunal de Justiça a respeito do tema[17], [18], em que pese caminharem no mesmo sentido do documento, deixam de mencioná-lo, o que demonstra certa resistência ainda em firmar posição no reconhecimento da abusividade de toda e qualquer comunicação mercadológica dirigida a crianças.
Entretanto, espera-se que com a constância dos debates a respeito do tema esse posicionamento evolua e fique cada vez mais evidente a necessidade de garantir efetividade à proteção dos hipervulneráveis no mercado de consumo.
Assédio ao consumo e hipervulnerabilidade do núcleo familiar na comunicação mercadológica voltada ao público infantil
A Lei n° 14.181/2021 trouxe importantes atualizações no CDC em matéria de prevenção e tratamento dos superendividados, suprindo uma lacuna no texto original da lei e que não mais se justificava. Com efeito, os problemas gerados pelo superendividamento vão além do titular das dívidas, razão pela qual se deve falar não só em consumidores, mas em famílias superendividadas [19].
Neste sentido, importante notar o quanto a publicidade e comunicação mercadológica infantil podem contribuir para criar ou agravar a situação de superendividamento familiar [20]. Num mundo de hiperconsumo emocional [21], o assédio de crianças com emprego das tecnologias da informação e poderosas técnicas de marketing no âmbito digital, aliado à desinformação de pais a respeito do uso dessas tecnologias e a falta de tempo para estar em companhia dos pequenos, coloca não apenas a criança, mas todo o núcleo familiar em posição de hipervulnerabilidade. Em outros termos: além da criança, também a família contemporânea é hipervulnerável, é uma “coletividade hipervulnerável”, exposta aos abusos de um mercado que impulsiona as crianças a influenciar (e promover) a maioria das escolhas e decisões de consumo familiares [22], [23].
Não por acaso, a Lei 14.181 trouxe para o CDC importante regulamentação limitadora de situações de assédio ao consumo no intuito de prevenir o superendividamento individual e familiar [24]. Trata-se do artigo 54-C, IV, que se direciona à proteção de idosos e outros consumidores em estado de vulnerabilidade agravada, como a criança e seu núcleo familiar. O novo dispositivo é importante reforço normativo ao artigo 39, inciso IV do CDC, que estabelece como abusiva a prática de assédio (“impingir” = forçar, empurrar) aos consumidores hipervulneráveis em função de fatores como a idade.
Nas situações envolvendo a comunicação mercadológica voltada ao público infantil esse assédio não se traduz tanto em práticas de coação verbal ou física (como se tem notícia em casos com idosos!), quanto em técnicas sutis e bastante sofisticadas de manipulação e convencimento da criança, que se dão, regra geral, por meio das mídias contemporâneas, tais como canais de Youtubers e na dinâmica dos games [25], onde a evolução do jogador condiciona-se à realização de microtransações eletrônicas dentro do ambiente virtual [26], com a utilização, na maioria das vezes, do cartão (e dos dados) de crédito dos pais ou demais responsáveis pela criança ou adolescente.
Essas e outras situações evidenciam a necessidade de um reconhecimento jurídico do núcleo familiar como coletividade hipervulnerável (CDC, artigos 2º, parágrafo único c/c artigo 29) diante dos abusos da publicidade e comunicação mercadológica voltada ao público infantil. Não obstante a existência dos deveres próprios do poder familiar, os pais contemporâneos encontram-se em grande dificuldade para exercer o cuidado e a vigilância de seus filhos, razão pela qual não é justo deixá-los à mercê do mercado sob o falacioso argumento de que o Estado não deve interferir na autonomia familiar [27].
[1] MAFRA NETTO, Alberto Mário; BARBOSA, Inêz Carneiro. A influência da criança no poder de compra de uma família: o quão importante é a educação familiar no consumo. Revista de Administração do CESMAC, v. 3, p. 69-84, 2019. DOI: https://doi.org/10.3131/race.v3i0.924.
[2] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n. 586.316. Relator: Min. Antonio Herman Benjamin. Brasília, 17 abr. 2007. DJe 19 mar. 2009.
[3] SCHMITT, Cristiano Heineck. Consumidores hipervulneráveis: a proteção do idoso no mercado de consumo. São Paulo: Atlas, 2014.
[4] D’AQUINO, Lúcia Souza. Criança e publicidade: hipervulnerabilidade? Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2017.
[5] GARBINI, Vanessa Gischkow; SQUEFF, Tatiana de A. F. R. Cardoso; SANTOS, Thomaz Francisco Silveira de Araújo. A vulnerabilidade agravada dos refugiados na sociedade de consumo. Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, v. 119, p. 19-47, set./out. 2018.
[6] XAVIER, José Tadeu Neves; RIEMENSCHNEIDER, Patrícia Strauss. A vulnerabilidade agravada do consumidor nas situações relacionadas à maternidade. Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, v. 121, p. 277-322, jan./fev. 2019.
[7] Veja-se por todos MIRAGEM, Bruno. Curso de Direito do Consumidor. 6. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016. p. 137-139.
[8] SIERADZKI, Larissa Maria; MOREIRA, Vlademir Vilanova. Superendividamento: análise acerca da hipervulnerabilidade do consumidor idoso. Academia de Direito, v. 3, p. 73-97, 2021. DOI: 10.24302/acaddir.v3.3129.
[9] VIEGAS, João Ricardo Bet. A hipervulnerabilidade como critério para aplicação do Código de Defesa do Consumidor. Res Severa Verum Gaudium, Porto Alegre, v. 4, n. 1, p. 73-91, jun. 2019.
[10] COMITÊ GESTOR DA INTERNET NO BRASIL. Pesquisa sobre o uso da internet por crianças e adolescentes no Brasil: TIC kids online Brasil 2018. São Paulo: Comitê Gestor da Internet no Brasil, 2019. p. 251-253. [e-book]
[11] A exemplo dos advergames e dos vídeos de “recebidos”, unboxing e com apresentação de produtos licenciados dos próprios youtubers.
[12] BRASIL. Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente. Resolução n. 163, de 13 de março de 2014. Disponível em: https://crianca.mppr.mp.br/pagina-1635.html#resolucao_163. Acesso em: 21 ago. 2021.
[13] Sobre o tema, ver: BENJAMIN, Antonio Herman. Das Práticas Comerciais. In: GRINOVER, Ada Pellegrini; BENJAMIN, Antonio Herman; FINK, Daniel Roberto; FILOMENO, José Geraldo Brito; WATANABE, Kazuo; NERY JÚNIOR, Nelson; DENARI, Zelmo. Código Brasileiro de Defesa do Consumidor: Comentado pelos autores do Anteprojeto. Rio de Janeiro: Forense, 2001. p. 215-440. p. 223; AZEVEDO, Fernando Costa de. O núcleo familiar como coletividade hipervulnerável e a necessidade de sua proteção contra os abusos da publicidade dirigida ao público infantil. Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, v. 28, n. 123, p. 17-35, maio/jun. 2019.
[14] ASSOCIAÇĀO BRASILEIRA DE EMISSORAS DE RÁDIO E TV. Nota pública: Publicidade infantil. 07 abr. 2014. Disponível em: https://www.Abert.org.br/web/notmenu/nota-publica-publicidade-infantil.html. Acesso em: 21 ago. 2021.
[15] CÂMARA DOS DEPUTADOS. Projeto de Decreto Legislativo n. 1.460/2014. Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=612104. Acesso em: 21 ago. 2021.
[16] MIRAGEM, Bruno. A Constitucionalidade da Resolução 163 do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda) (Parecer). 2014. Disponível em: https://criancaeconsumo.org.br/wp-content/uploads/2014/02/Parecer_ProfBrunoMiragem.pdf. Acesso em: 21 ago. 2021.)
[17] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 5.631. Relator: Min. Edson Fachin. Brasília, 25 mar. 2021. DJe 27 maio 2021.
[18] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n. 1.558.086/SP. Relator: Min. Humberto Martins. Brasília, 10 mar. 2016. Disponível em: https://goo.gl/zbWofn. Acesso em: 10 maio 2021; BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n. 1.613.561. Relator: Min. Herman Benjamin. Brasília, 25 abr. 2017. DJe 31 ago. 2020.
[19] AZEVEDO, Fernando Costa de. O núcleo familiar como coletividade hipervulnerável e a necessidade de sua proteção contra os abusos da publicidade dirigida ao público infantil. Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, v. 28, n. 123, p. 17-35, maio/jun. 2019.
[20] LIMA, Clarissa Costa de; MIRAGEM, Bruno. Patrimônio, contrato e a proteção constitucional da família: estudo sobre as repercussões do superendividamento sobre as relações familiares. Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, v. 91, 2014. p. 101-102.
[21] LIPOVETSKY, Gilles. A felicidade paradoxal: Ensaio sobre a sociedade do hiperconsumo. São Paulo: Companhia das Letras. 2007.
[22] AZEVEDO, Fernando Costa de. O núcleo familiar como coletividade hipervulnerável e a necessidade de sua proteção contra os abusos da publicidade dirigida ao público infantil. Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, v. 28, n. 123, p. 17-35, maio/jun. 2019. p.27-31.
[23] LIMA, Clarissa Costa de.; MIRAGEM, Bruno. Patrimônio, contrato e a proteção constitucional da família: estudo sobre as repercussões do superendividamento sobre as relações familiares. Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, v. 91, 2014. p. 101-102.
[24] Sobre o tema v. VERBICARO, Dennis; RODRIGUES, Lays; ATAÍDE, Camille. Desvendando a vulnerabilidade comportamental do consumidor: uma análise jurídico-psicológica do assédio ao consumo. Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, v. 119, p. 349-384, set./out. 2018.
[25] D’AQUINO, Lúcia Souza. A criança consumidora e os abusos da comunicação mercadológica: passado, presente e futuro da proteção dos hipervulneráveis. Curitiba: CRV, 2021 (no prelo). Interessante citar aqui a utilização, em alguns games, das chamadas loot boxes ou caixas de recompensa. Para saber mais a respeito: VINHA, Felipe. O que são as loot boxes? Entenda a polêmica dos games. TechTudo, 30 nov. 2017. Disponível em: https://www.techtudo.com.br/noticias/2017/11/o-que-sao-loot-boxes-entenda-a-polemica-dos-games.ghtml. Acesso em: 20 ago. 2021.
[26] Só para se ter uma ideia do que significa o mercado das microtransações nos jogos eletrônicos o site The Enemy publicou a seguinte notícia: TREFILIO, Daniel. Electronic Arts faturou US$ 4 bi apenas com microtransações no último ano. Valor representa 74% do faturamento no ano fiscal de 2020-2021. The Enemy, 12 maio 2021. Disponível em: https://www.theenemy.com.br/playstation/ea-4-bilhoes-microtransacoes. Acesso em: 21 ago. 2021.
[27] Ao contrário, a própria Constituição Federal estabelece que essa autonomia não é absoluta ao determinar, para a proteção integral da criança, o dever de intervenção estatal juntamente com a sociedade civil (artigo 227). Sobre o tema, v. VERBICARO, Dennis; BOAVENTURA, Igor Davi da Silva; RIBEIRO, Cristina Figueiredo Terezo. A proteção integral e o melhor interesse da criança no contexto das relações de consumo. Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, v. 122, p. 89-111, mar./abr. 2019.
Fonte: Conjur