Na última semana, um caso grave chamou atenção nos noticiários brasileiros e no sistema de Justiça. Uma magistrada da comarca de Tijucas (SC), em audiência, desconsiderando todo o ordenamento jurídico brasileiro e normas de direito internacional, teria induzido uma criança, de apenas 11 anos, vítima de um estupro, a levar adiante uma gravidez indesejada, mesmo diante de todos os riscos e traumas futuros e da expressa vontade da mesma e de sua mãe.

O Código Penal Brasileiro em seu artigo 128, inciso II, garante, a toda pessoa vítima de um estupro, o direito ao aborto, não colocando limitação temporal para tal finalidade, logo, totalmente equivocada a conduta da magistrada.

Independentemente da questão da possibilidade jurídica ou não do aborto, o que mais chamou a atenção foi a forma negligente e abusiva como a criança foi tratada pelo sistema de Justiça, que tinha a obrigação legal de lhe proteger, tendo por base o princípio da proteção integral, que rege toda a rede protetiva da criança e do adolescente.

Situações como a acima exposta demonstram a importância de ser inserido no ordenamento jurídico brasileiro a figura processual do defensor da criança, que, caso presente na audiência, acompanhando e defendendo a pequena menina, evitaria que esta, na qualidade de vítima e em tão tenra idade, passasse por tamanha violência institucional, perpetrada por quem deveria protegê-la.

A Convenção Americana de Direitos Humanos, mais conhecida como Pacto de São José da Costa Rica [1], em seu artigo 8o, garante que toda pessoa, durante o andamento do processo em que é parte, tem o direito de defender-se pessoalmente ou de ser assistido por um defensor de sua escolha, ou, caso não o faça, por um defensor indicado pelo Estado.

A Convenção sobre os Direitos da Criança — ratificada pelo Brasil em 24 de setembro de 1990, em seu artigo 12 —, garante a toda criança e adolescente capaz o direito de expressar suas opiniões, de forma livre, sobre todos os assuntos que digam respeito à sua pessoa, tendo o direito de ser ouvida em todos os processos judiciais ou administrativos que tratem sobre fatos de seu interesse, seja diretamente ou através de um representante ou de um órgão apropriado, de acordo com as regras processuais de seu país.

É exatamente nesse ponto que ganha relevância o(a) defensor(a) da criança [2], uma figura processual que vem surgindo no meio jurídico mundial, para dar vez e voz a toda criança, funcionando como representante dos seus interesses pessoais e individuais, nos procedimentos judiciais ou administrativos que sejam parte de alguma forma, equilibrando a relação processual em nome do princípio da igualdade das partes, e, garantindo a ampla defesa e o contraditório da criança e o devido processo legal, questões estas não respeitadas pela juíza de Tijucas.

O defensor da criança atuaria neste caso acompanhando a criança desde o início do processo, inclusive, participando da audiência ao seu lado, defendendo seus direitos e interesses, e, mais do que tudo, evitando que violências e abusos fossem praticados, como infelizmente foi presenciado no interior do Fórum de Tijucas.

O despreparo dos atores do sistema de justiça na oitiva da criança é alarmante. Ainda observou-se o desconhecimento integral da Lei do Depoimento Especial (Lei 13.431 de 2017), que veda atos como esse, atribuídos à magistrada e à promotora de Justiça de Santa Catarina, e que podem implicar na revitimização da criança, que já passou por traumas e abusos sexuais.

A lei do depoimento especializado protege a criança contra perguntas abusivas como as realizadas pela magistrada e promotora de justiça catarinense, quando em seu artigo 5º, garante a toda criança o direito de ser protegida e resguardada de qualquer comportamento inadequado adotado pelos demais órgãos atuantes no processo, inclusive com limitações das intervenções.

Segundo a Lei 13.431/2017, toda criança, enquanto sujeito de direitos, goza dos direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sendo-lhe assegurada os meios para viver longe de violência e preservar sua saúde física e mental, tipificando como formas de violência, a institucional, entendida como a praticada por instituição pública, inclusive quando gerar a revitimização; e; a psicológica, caracterizada por qualquer conduta de desrespeito em relação à criança mediante constrangimento, humilhação, manipulação e intimidação sistemática comprometedora do seu desenvolvimento psíquico e emocional.

O sistema de Justiça de Santa Catarina constrangeu, humilhou, manipulou e intimidou uma criança vítima de um estupro, criando na sala de audiência todo um cenário de revitimização, num verdadeiro ato de violência institucional, devendo pois seus integrantes serem responsabilizados por seus atos.

Um homem violentar sexualmente uma criança de 10 anos é repugnante, mas ver uma criança ser violentada e abusada em seus direitos por quem tem o dever de protegê-la é imperdoável. Criança não é mãe e estuprador não é pai, perguntar a uma criança de 11 anos se ela “suportaria ficar mais um pouquinho?” com um feto em seu ventre, oriundo de um estupro e que poderia colocar sua vida em risco; se ela “queres escolher um nome?” ou “você acha que o pai concordaria?”, é tão abusivo quanto a violência sexual sofrida, pois fere a criança em sua alma, deixando traumas incuráveis.

Toda criança, por conta da peculiar condição de pessoa em desenvolvimento, é digna da proteção integral do Estado, não podendo ser tratada como um objeto ou desconsiderada enquanto voz ativa em sua condição de sujeito de direitos. O defensor da criança pode garantir tudo isso, funcionando como o instrumento que garantirá a toda criança o real exercício dos seus direitos reconhecidos na Constituição Federal e nas normas nacionais e internacionais, pois defenderá dentro do processo o interesse particular da criança, ou seja, lutará dentro do processo para efetivar a vontade desta [3], e, para garantir que ela seja respeitada enquanto pessoa, durante todo o feito.

O defensor da criança, além de proteger a criança dentro do processo, tem o poder de proporcionar à esta o direito de falar, peticionar, contestar, replicar, recorrer e posicionar-se sobre seus interesses, de acordo com sua vontade, e, sempre respeitando a sua autonomia progressiva [4]. (GRANICA; SOTOLANO, 2009).

Caso a criança vítima do sistema de justiça catarinense estivesse acompanhada do seu defensor da criança, jamais a magistrada e a representante do Ministério Público teriam espaço para perpetrar tamanha maldade, pois encontrariam alguém com igualdade de armas para rebater suas condutas abusivas, e, não uma pobre criança, acuada e indefesa, em uma sala de audiência.

A criança deveria encontrar apoio e esperança no Estado e ser tratada com dignidade e respeito, o que implica no direito de ser ouvida e ter voz ativa nas decisões que lhes são importantes, como gerar um filho de uma relação de violência extrema, mas ao contrário, foi abusada, ferida e coagida moralmente a ouvir e dizer o que não queria nem devia, pois desacompanhada de um profissional técnico, devidamente preparado, aprovado em concurso público, com atuação e experiência na infância e juventude e especialização na defesa e proteção dos direitos da criança e do adolescente, no caso, o defensor da criança.

A criança vítima de estupro, nos processos como esse em que se discute o direito ao aborto, não pode ser vista apenas como mera destinatária de uma decisão advindo de um processo, deve, também, ser sujeito desse processo, participando ativamente do mesmo e contribuindo para a tomada de decisões que a afetarão, decorrência, inclusive, do princípio da dignidade da pessoa humana e do exercício de sua autonomia [5] (DIGIÁCOMO, 2017, p. 43), já que ela é a maior interessada no que venha a ser decidido.

A criança, apesar de ser considerada juridicamente incapaz perante a legislação brasileira — conforme a teoria da incapacidade positivada no Código Civil [6], segundo a Convenção sobre os Direitos da Criança de 1989, ratificada pelo Brasil e acima referida — tem o direito e a garantia, desde a mais tenra idade, de exercer sua autonomia e de ser ouvida e ter sua vontade levada em consideração toda vez que algo que seja de seu interesse esteja em discussão, considerado sempre a idade, grau de maturidade, discernimento, responsabilidade e entendimento cognitivo [7]. (ALBUQUERQUE, 2016, p. 200; VIEIRA; SILLMANN, 2016; SILLMANN, 2019).

O defensor da criança é exatamente essa pessoa que vai dar vez e voz a essa criança dentro do processo, será o responsável pela defesa técnica dentro do processo, fazendo valer a vontade da criança, que deve funcionar como fator determinante para fins de aplicação da lei ao caso concreto pelo julgador, o que não ocorreu em Santa Catarina.

As crianças são pessoas como quaisquer outras e como tais devem ter suas autonomias respeitadas de acordo com seus graus de desenvolvimento e discernimento, o que implica a prerrogativa de poderem exercer os seus direitos por si mesmas — de acordo com sua idade, maturidade [8] (REY-GALINDO, 2019) e grau de responsabilidade —, embora isso implique em ir contra seus pais ou responsáveis legais, Ministério Público e Juiz, pois apesar de ocuparem um lugar diferente e especial em relação aos adultos no cenário jurídico e social, as crianças não são menos importantes, já que, como sujeitos de direitos, são detentores de direitos próprios, cujos quais têm o direito de exercê-los [9] (KEMELMAJER DE CARLUCCI, 2012) e defendê-los.

Se a criança consegue realizar uma avaliação adequada sobre a demanda que está posta, conseguindo enxergar as vantagens e desvantagens de sua decisão, sua participação nos feitos que lhes dizem respeito são válidas e de direito [10] (BUKA, 2015), mesmo que suas vontades sejam contrárias a de seus genitores e de todo o sistema de Jsutiça. A criança tem assegurado o direito humano à vida privada, logo, de poder expressar e fazer valer a sua vontades no trilhar de sua vida, dentro, entretanto, dos limites de sua capacidade cognitiva, que deve ser avaliada no momento da manifestação [11] (WICKS, 2007), por profissional técnico devidamente habilitado.

O ocorrido em Santa Catarina demonstra que os operadores de direito ainda não estão devidamente preparados para ouvir uma criança vítima de violência sexual, entendimento este ratificado pela Lei 13.431 de 2017, que trouxe a escuta especializada, prevendo que a oitiva da criança vítima de violência sexual deve ser realizado em local apropriado e acolhedor, com infraestrutura e espaço físico que garantam o devido respeito a vítima da violência, e, por profissionais especializados, o que não foi feito pela juíza de Tijucas.

O defensor da criança é mais uma inovação que as defensorias da infância e juventude vem tentando introduzir no Brasil. Casos como esse que aconteceu em Santa Catarina só reforça a importância deste novo instituto processual na garantia da efetivação da dignidade humana de nossas crianças.

[1] COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Convenção Americana Sobre Direitos Humanos. Disponível em: https://www.cidh.oas.org/basicos/portugues/c.convencao_americana.htm. Acesso em: 11 ago. 2020.

[2] QUAINI, Marcela. La representación del niño em el proceso directamente por un abogado em Argentina y el derecho comparado. Disponível em: http://www.apadeshi.org.arg/representacion_del_nino.htm. Acesso em: 1 ago. 2020.

[3] RORIGUEZ, Laura. El derecho a ser oído y la defensa técnica a la luz de la ley 26.061 de Protección Integral de Derechos de Niñas, Niños y Adolescentes. Disponível em: http://www.apadeshi.org.arg/el_derecho_a_ser_oído_y_la_defen.htm. Acesso em: 2 ago. 2020.

[4] GRANICA, Adriana e SOTOLANO, Oscar. El rol del abogado del niño em la nueva normativa vigente em Argentina – una perspectiva jurídica y psicoanalitica acerca del derecho a ser oído. Revista Cubana de Derecho. Jan-Jun, 2009. Disponível em: http://vlex.com/source/revista-cubana-derecho-2615/issue_nbr/%2333. Acesso em: 1 ago. 2020.

[5] DIGIACOMO, Illdeara Amorino e DIGIACOMO, Murillo José. Estatuto da criança e do adolescente anotado e interpretado. 7º. Curitiba: MPPR – CAOPCAE, p. 43.

[6] BRASIL. Lei n° 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Poder Executivo, Brasília, DF, 11 jan. 2002. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/L10406compilada.htm. Acesso em 11 ago. 2020.

[7] SILLMANN, Marina Carneiro Matos. Competência e recusa de tratamento médico por crianças e adolescentes: um necessário diálogo entre biodireito e o direito infantojuvenil. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2019.

[8] REY-GALINDO, M. J. (2019). El Abogado del Niño. Representación de una garantía procesal básica. Revista Latinoamericana de Ciencias Sociales, Niñez y Juventud, 17(1), 35-46. doi: https://dx.doi.org/10.11600/1692715x.17101. Acesso em: 19 jul. 2020.

[9] KEMELMAJER DE CARLUCCI, A. (2012). El derecho constitucional del niño a ser oído. Revista de Derecho Privado y Comunitario, (II).

[10] BUKA, Paul. Patients — Rights, law and ethics for nurses. Nova Iorque: Taylor e Francis, 2015.

[11]WICKS, Elizabeth. Human Rights And Healthcare. Londres: Hart, 2007.

 

Fonte: conjur